15 de janeiro de 2008

A HISTÓRIA DA ETERNIDADE | Camilo Cavalcante | 2003



Assista: http://www.portacurtas.com.br/Filme.asp?Cod=1890

A História da Eternidade: Um delírio de violência e miséria humana
Por Daniel Monteiro do Nascimento


“Tudo na vida é frágil. Tudo passa...”. Esse verso de Florbela Espanca sobre a tela negra somado a uma respiração ofegante e gemidos de dor que posteriormente se tornam gritos arrepiantes nos dão o tom de estranhamento e inquietude que permeia todo o curta-metragem A História da Eternidade, de Camilo Cavalcante. E tudo isso acontece antes mesmo de qualquer imagem ser projetada.
Camilo Cavalcante se supera a cada trabalho mostrando um vigor conceitual e estético resultado de um amadurecimento de uma linguagem poética e metafórica própria. Desde Cálice (1995), passando por O Velho, o Mar e o Lago (2000), Cavalcante busca a partir de uma construção alegórica, onde delírio de violência e miséria humana é combinado à crueldade cênica e agressividade estética.
Filmado em um único plano-sequência, A História da Eternidade é um exercício de inquietação estética e consciência artística. Dividido em pequenos esquetes que aparentemente não apresentam nenhuma relação, apresentam uma viagem dentro dos instintos humanos. A morte, o amor, a rivalidade, a curiosidade, a fome, a angústia, o prazer, tudo isso é arremessado para o espectador desde o primeiro esquete, onde após um parto agonizante um bebê nate morto é jogado aos cachorros. Essa cena notoriamente é a que deixa uma impressão mais forte, fato que não ofusca o restante do filme.
Após essa cena temos um esquete que expõe a fragilidade do amor. Um casal se separa devido à migração do amado. Em seguida, um inocente jogo de dominó revela a perversidade do vício, pois um homem ensangüentado amarrado a um poste, provável castigo por dívida de jogo.
A câmera não para de seguir os personagens, de uma forma aparentemente aleatória. Assim, a curiosidade de uns garotos nos leva cena de uma crueldade bestial. Um chiqueiro, um homem, uma mulher e uma relação de dominação sádica e animalesca. Essa mulher se submete a uma violência para poder comer dejetos deixados pelo homem.
A cena do cinema, onde está sendo projetado O Grande Ditador, de Charles Chaplin serve de passagem para a cena seguinte. Um homem mata e corta a ganganta de um cordeiro que está dependurado em uma árvore. Será que esse cordeiro é o “Cordeiro de Deus”, que tirará os pecados do mundo e terá piedade da humanidade, ou será o “Cordeiro de Deus”, que tirará os pecados do mundo, e nos dará a paz?
As cores do filme são quentes para retratar o crepúsculo sertanejo e a aridez do cenário, que formam os únicos fios condutores da narrativa fragmentada e elíptica. O fato de o filme ser um único plano-sequência exigiu não só uma preocupação extra em relação à direção de atores, como também uma notável utilização do espaço, e uma constante (re)definição deste ao longo do plano.
Apesar de não ser um recurso inovador na linguagem cinematográfica o fato do filme não apresentar cortes, remete a noção de linearidade que temos da História. Não podemos deixar de destacar que o filme termina propositalmente na imagem de alguém assistindo uma TV, cuja programação é o próprio início do filme. Isso estabelece uma relação de ciclo, o ciclo da eterna tragédia da vida humana.


Bibliografia

TOLEDO, Marcos. Camilo Cavalcante é ovacionado. Disponível em: http://www2.uol.com.br/JC/_1999/1506/cc1506b.htm. Acesso em: jan 08.
VERÍSSIMO, Fernando. A História da Eternidade, de Camilo Cavalcante. Disponível em: http://www.contracampo.com.br/56/historiadaeternidade.htm. Acesso em: jan 08.

14 de janeiro de 2008

O PALHAÇO DEGOLADO | Jomard Muniz de Britto | 1977




Assista: http://www.youtube.com/watch?v=nvm1w-utZXM

O PALHAÇO DEGOLADO
Por Carolina Vasconcelos

O PALHAÇO DEGOLADO: UMA SÁTIRA A SEU MODO

O filme de Jomard Muniz de Britto e Carlos Cordeiro, produzido em 1977, está inserido no Ciclo do Super 8, que configurou uma nova fase da vida cultural de Pernambuco. Surgido nos anos 40, não foi considerado um movimento, pois não havia proposta ideológica e tampouco uma conformidade temática naquilo que era realizado. Adeptos da corrente experimentalista, a qual propôs uma antropofagia crítica, Jomard e Carlos Cordeiro utilizaram um poema de Wilson Araújo de Souza para homenagear, de forma satírica, o sociólogo Gilberto Freyre e o escritor Ariano Suassuna. Atacando as idéias conservadoras dessas personalidades, os cineastas realizaram um dos filmes mais ousados e críticos do Ciclo do Super 8.
Jomard Muniz de Britto mesmo afirma: “Todo meu esforço sempre foi e continua sendo o de estar sintonizado com as linguagens contemporâneas. Sempre em busca da mais crítica e poética modernidade. Com e sem vaidades. Com e sem apelo às modas. Astuciosamente”. E é dessa forma que o curta de 1977 se faz notável dentro do ciclo, continua despertando interesse e chamando a atenção trinta anos depois, apesar de tratar-se de uma produção simples, com o mínimo de recursos financeiros. Os diretores tinham em mãos apenas a modernidade que a câmera super 8 representava na época.
O Palhaço Degolado é encenado na antiga Casa de Detenção (que hoje é a Casa da Cultura). Nesta, o palhaço chama repetidas vezes pelo “Mestre Gilberto Freyre” e clama pela sua Casa Grande e pela Senzala. Estes elementos estão sugestivamente relacionados à Casa de Detenção, que é para ele a casa de detenção da cultura. As críticas ao autor de “Sobrados e Mucambos” supostamente se relacionam com as suas atitudes paradoxais: em “O Mundo que o Português Criou” e “Aventura e Rotina”, Gilberto Freyre demonstrou tendências colonialistas portuguesas na África, além de ter apoiado o regime militar instaurado em 1964. Em contrapartida, fez um excelente estudo da sociedade brasileira, denunciando seus vícios e costumes. Um mestre “muito bem situado nos trópicos: tristes trópicos”.
Jomard e Carlos Cordeiro ainda criticam o envolvimento entre política e tecnocracia, o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, o desenvolvimentismo e afirmam as raízes da cultura como sendo um complexo de intelectuais. O palhaço exige em alto e bom som: abaixo o imperialismo cultural, a cultura amordaçada! Os nordestinos são chamados de nordestinados: destinados às Vidas Secas de Graciliano Ramos. Até José Lins do Rego é ponto de partida para os questionamentos sobre os meninos de engenho e a bagaceira. É o sinal de que a crítica está fazendo cobranças.
O “Mestre Ariano Suassuna”, ou mestre armorial, também é alvo das ferrenhas críticas do palhaço. O movimento insistentemente citado nasceu nos anos 70, pelas mãos do próprio escritor, e foi denominado de Armorial. Seu principal objetivo foi criar uma arte erudita a partir dos elementos da cultura popular nordestina como literatura de cordel, música, dança e qualquer outra expressão artística. Segundo o palhaço, tudo pode se transformar em armorial: o céu, a dança, a astrologia, a estética, a sexologia e até mesmo (quem diria?) os sobrados e mucambos. O povo torna-se também armorial: o mesmo povo que morou na senzala e ainda lutava contra a ditadura via suas origens se transformando em qualquer coisa erudita para o deleite dos grandes intelectuais.
O palhaço está degolado: o golpe militar de 1964 (representando o exílio e a fome), os dias de repressão de 1968. O ano de 1978 é invocado, na esperança de que talvez traga consigo alguma expectativa e resposta para a pergunta que é esbravejada diversas vezes: “Até quando?”. O palhaço se pergunta o que restou depois disso e onde está o professor Paulo Freire. Mesmo com tantas críticas e ainda que não houvesse perspectivas de melhora tanto para a sociedade quanto para os produtores (que não conseguiam apoio e muito menos investimentos), a luta com o super 8 não foi a luta mais vã como afirma o palhaço ao final do curta. E esteve longe de ser uma luta vã, mas sim uma luta... a seu modo.

RECIFE DE DENTRO PRA FORA | Kátia Mesel | 1997


RECIFE DE DENTRO PRA FORA
Por Paolla Marletti

Com muito esmero, o curta-metragem “Recife de Dentro Para Fora”, de Kátia Mesel, analisa uma realidade um tanto cruel da capital pernambucana, sem renegar a sofisticação estética da imagem e a coerência entre imagem, texto e som.
O audacioso projeto documental da diretora pernambucana encontrou respaldo no poema intitulado “O Cão Sem Plumas” do poeta modernista João Cabral de Melo Neto, musicado por Geraldo Azevedo e interpretado por ele, Zé Ramalho e Elba Ramalho. Tendo sido influenciado por correntes surrealistas, o poeta “pinta” imagens não-reais se pensadas no aspecto físico, mas condizentes com o quadro social no qual se encontra o rio Capibaribe – personagem principal tanto do poema, quanto do curta. Comparações excêntricas e escabrosas se misturam com a falta de estruturação linear da sintaxe. Na tradição ocidental romântica, havia uma troca de emoções entre o eu - lírico poético e o leitor. João Cabral, no entanto, quebra essa tradição (modernista que é), dando um objetivismo maior a sua obra. No curta, entretanto, há um resgate do subjetivismo lírico sem render-se ao tradicionalismo antigo. Desse modo, as imagens retratadas no vídeo e o texto de João Cabral se completam –razão e emoção –resultando num documento de análise do destino escolhido pelo homem para o rio e para o próprio homem, que pelo rio é moldado.
O curta-metragem acompanha a construção do poema que se vale de duas fases. A primeira, uma descrição física do rio, seu percurso, desembocadura e elementos que o completam no âmbito espacial (o mangue, por exemplo). Essa descrição leva a uma segunda etapa do poema: a análise da geografia humana da comunidade ribeirinha, à margem do rio, mas mais ainda, à margem da sociedade. As imagens deixam claro o que João Cabral pretendia: denunciar.
O homem é dissolvido no rio. A análise de um resulta na análise do outro, conseqüentemente. Há uma análise do meio ambiente, sem dissociá-lo das questões humanas. No poema, homem e rio se misturam, não se sabe onde um termina e o outro começa. A negritude do homem é da lama negra promovida pelo rio, a pobreza do homem é causa e conseqüência da pobreza do rio. Pretende-se, então, uma reflexão sobre o que o homem está fazendo do rio, e, sedo indissociáveis, o que está fazendo de si mesmo.
O autor também cria uma oposição entre as coisas como são e como deveriam ser. Ao constatar a ferrugem e insalubridade da água, ele sonha com a água perfeita de um copo de água, da chuva, a água que abre para os peixes. Quanto ao que deveria ser o homem, ele sofre com a realidade dos moradores das margens do rio. As imagens mostram exatamente esse potencial de “dever ser” não explorado do rio, e retrata no que se tornou, assim como mostra o Recife “desenvolvido” erguido ao longe do Capibaribe em contraste com os que por ele são moldados. A realidade desses últimos encontra nas lentes uma fotografia tão cruel quanto bela.
Kátia ainda buscou auxílio em depoimentos da vida do próprio João Cabral de Melo Neto em relação ao rio Capibaribe. Esse elemento legitimou o curta como sendo documental. Além, é claro, das imagens feitas de dentro do rio, das paisagens e pessoas que o margeiam.
A análise social e psicológica, a retratação da realidade e o primor da imagem na obra proporcionaram-lhe a devida visibilidade no meio cinematográfico tendo angariado vários merecidos prêmios, entre eles o de melhor fotografia no XXV Festival de Gramado e o de melhor trilha sonora no XXX Festival de Brasília ’97. Recife ganha “de dentro para fora” uma crítica e análise contundente, sem perder o brilho e beleza naturais da Veneza Brasileira.
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RECIFE DE DENTRO PRA FORA
Por Paulo Camêllo

Baseado no poema “Cão sem Plumas” de João Cabral de Melo Neto, o curta Recife de dentro para fora apresenta poeticamente um retrato do universo ao redor do rio Capibaribe – desde aspectos físicos fluviais, até o modo de vida das comunidades ribeirinhas, pontuando em diversos momentos a indissociabilidade entre homens e rio no contexto do Capibaribe.
Iniciando com depoimento de João Cabral a respeito do poema, logo percebe-se o traço documental do curta ao alternar entre a fala do autor e imagens aéreas do rio. O autor – consagrado poeta pernambucano do século XX influenciado pela estética literária surrealista, na qual a quebra da estruturação lógica do pensamento e de sua tradução lingüística equivalente são características fortes – ressalta a importância dessa obra ao classificar o poema como sofisticado (ao contrário da simplicidade de “Morte e Vida Severina”, segundo o próprio) e pertencente a uma poesia de transição. “Cão sem plumas” porque o Capibaribe representa um rio que ninguém enfeita.
Após a credibilidade conquistada com depoimento do autor do poema no qual o filme se baseia, o personagem principal da película – o rio – começa a ser “narrado” sob a fotografia deslumbrante de Ricardo Della Rosa e ao som do poema musicado por Geraldo Azevedo e interpretado por Elba Ramalho, Zé Ramalho e o próprio Geraldo. O objetivismo almejado por João Cabral na crueldade metafórica com que desmascara o universo do Capibaribe é, de certa maneira, subjetivado pelos planos e ótica da diretora e roteirista Kátia Mesel.
Dessa forma, trechos como “A cidade é passada pelo rio como uma rua é passada por um cachorro”, “Aquele rio era como um cão sem plumas. Nada sabia da chuva azul, da fonte cor-de-rosa, da água do copo de água, da água de cântaro, dos peixes de água, da brisa na água. Sabia dos caranguejos, de lodo e ferrugem”, “Por que sobre ela [água do rio], sempre, como que iam pousar moscas?” são transpostos para o curta a partir de imagens de palafitas, mangues, lixo, erosão induzida (retirada de areia do rio), entre outros.
Contudo, tanto no texto de João Cabral como no documentário de Kátia Mesel, o aspecto humano do rio Capibaribe é tão importante quanto aspectos físicos como água e plantas. A denúncia sobre o descaso do “rio que ninguém enfeita” é, sobretudo, direcionada à condição da comunidade cuja sobrevivência depende do Capibaribe, comunidade essa marginal à sociedade recifense em geral. Assim, imagens de pescadores, de meninos pobres brincando nas águas sujas do rio, de tetéias, mangues e mãos enlameadas pegando caranguejos servem para ilustrar que “Entre a paisagem (fluía) de homens plantados na lama; de casas de lama plantadas em ilhas coaguladas na lama; paisagem de anfíbios de lama e lama [...] onde a fome estende seus batalhões de secretas e íntimas formigas”.
O contraste entre a excelente fotografia do documentário e a situação alarmante que ele denuncia gera uma reflexão a respeito de como a sociedade pernambucana trata suas comunidades, pois “Como o rio aqueles homens são como cães sem plumas (um cão sem plumas é mais que um cão saqueado; é mais que um cão assassinado. Um cão sem plumas [...] É quando a alguma coisa roem tão fundo até o que não tem)”. A mensagem tanto do poema quanto do filme é a de que o rio e o homem são um só e interdependentes para viver uma vida espessa “porque é mais espessa a vida que se luta cada dia, o dia que se adquire cada dia (como uma ave que vai cada segundo conquistando seu vôo)”.

CONCEIÇÃO | Heitor Dhalia e Renato Ciasca | 1999





CONCEIÇÃO
Por Hugo Henrique

Vestidos de noiva, prostitutas, presidiários recém-fugidos e uma das maiores festas religiosas de Pernambuco. Estes são os elementos-chave de Conceição (1999), um curta ficcional de Heitor Dhalia impregnado de realidade, que constrói um considerável recorte da dinâmica recifense.
O filme, com constante presença de fortes cores e contrastes, narra a história de dois presidiários (personagens de Aramis Trindade e Cláudio Assis) que roubam vestidos de noiva para duas prostitutas (interpretadas por Magdale Alves e Mônica Pantoja) pagarem uma promessa no Morro da Conceição. Essa união de elementos, alguns aparentemente díspares, é acompanhada de uma linguagem repleta de expressões populares e regionais que despertam de maneira fácil empatia no público. A facilidade de aproximação com o espectador é ratificada com o uso de uma câmera que circula de maneira bastante solta, levando-o a fazer parte de um cenário vernáculo.
Assim como em Texas Hotel (1999, Cláudio Assis), Conceição aborda e reapropria lugares urbanos marginalizados. No entanto, o filme de Heitor Dhalia mostra-se nitidamente distinto daquele primeiro pela escolha de como abordar essa realidade. Mesmo utilizando espaços e classes marginalizados socialmente, o curta opta por um tratamento estético que não assinala o sujo, e sim dá espaço para o colorido forte, e transpõe os problemas para uma esfera ficcional, tornando-o uma obra leve e descontraída.
O movimento manguebeat exerce também forte influência no filme e é, portanto, facilmente lembrado. A forma como a cidade é abordada, os lugares do Recife que são mostrados, a presença de ícones da cena mangue como Roger de Renoir e alguns músicos da banda Nação Zumbi e diversas outras alusões mostram-se constantes no transcorrer da história. A utilização de analogias ao manguebeat faz uso de diversos códigos restritos, muitas vezes, ao universo recifense; no entanto, o desconhecimento desses pontos não prejudica o entendimento da história.
Outro recurso bastante interessante no curta é a utilização de cartelas (largamente usadas no cinema mudo) que fazem uso de uma rica intertextualidade. As cinco cartelas mostradas trazem nomes de antigos cinemas desativados do Recife e filmes famosos das décadas de 50, 60 e 70, que desenvolvem no seu enredo algum ponto em comum ao que acontece naquele momento no curta.
No espaço em que é mostrada, a festa no Morro da Conceição é ricamente abordada e aí se faz clara a ligação com o título do curta. Nessa seqüência, assistimos à total transposição das prostitutas a um papel em que elas mostram-se fiéis à santa por completo. Vestidas de noivas e fazendo seus pedidos e orações para que o mal, representado durante todo o filme pela figura de uma cobra, mantenha-se longe, ambas são diluídas em meio à multidão que também reza e agradece à santa.
Após o desfecho da história, o espectador é ainda convidado para um passeio no táxi de Roger. Numa tomada que não mantém ligação estrita com o resto do curta, a não ser pela figura do táxi e seu motorista, serão pontuados alguns dos problemas do Recife, ainda que de forma conformista. O banco do veículo que outrora transportou os fugitivos leva agora personalidades da cultura local.
Com um aspecto visual marcante e bem resolvido, o curta de Heitor Dhalia consegue requinte e precisão em sua estética e a partir daí contar uma história simples explorando precisamente as situações. A particular abordagem fictício-real de três importantes esferas sociais – a religiosa, a marginalizada e a cultural – tornam o filme bem-sucedido e permite, assim, a construção de uma divertida e verdadeira representação de parte da sociedade recifense.

Referências:
FONSECA, Nara Aragão. Da lama ao cinema: interfaces entre o cinema e a cena mangue em Pernambuco. Recife, 2006. 125 folhas Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Pernambuco. CAC. Comunicação.
MENDONÇA FILHO, Kleber. Nova safra tem boa recepção. JC Online. Disponível em
http://www2.uol.com.br/JC/_1999/2408/cc2408h.htm. Acesso em 5 jan. 2008.
ZANFOLIN, Sofia. O Recife Pós-moderno: a estetização da periferia. Disponível em
http://64.233.169.104/search?q=cache:PvhbFIyr3X4J:reposcom.portcom.intercom.org.br/bitstream/1904/4975/1/NP13ZANFORLIN.pdf+%22Em+Concei%C3%A7%C3%A3o,+as+primeiras+imagens
+da+cidade+surgem+atrav%C3%A9s+do+vidro+traseiro+do%22&hl=pt-BR&ct=clnk&cd=1&gl=br
. Acesso em 5 jan. 2008.

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CONCEIÇÃO
Por Rayanne Andrade

“Conceição” (1999), de Heitor Dhalia, narra a história de duas prostitutas que se sentem seduzidas por dois vestidos de noivas expostos na vitrine de uma loja. Elas, sonhando em vesti-los, ficam paradas em frente à loja observando-os. No entanto, o dono da loja pensa que elas estão usando a calçada da frente de seu estabelecimento para se prostituírem e as expulsa de lá, por não querer ter o nome de sua loja agregado a essa prática. As duas, sem terem o dinheiro para comprar tal produto, decidem pedir a dois amigos recém-fugidos do Aníbal Bruno, penitenciária do Recife, que roubem o vestido para que elas possam usá-los na festa do morro da Conceição e se sentirem noivas por pelo menos um dia.
O curta é iniciado com os créditos misturados a frases de ditos populares, todos em placas pintadas à mão e dispostos de maneira que a câmara passeia por um ambiente repleto delas. Assim, tudo feito em uma única tomada. O filme é dividido em capítulos, como em “O Cheiro do Ralo” – filme de mesmo diretor – e cada parte possui o nome de um famoso filme como se estivesse em cartaz em algum cinema antigo da cidade do Recife.
Várias cenas do Recife são mostradas sempre que aparece um personagem externo à trama, um típico taxista recifense vivido por Roger de Renor. Enquanto transporta os personagens principais, o rádio de seu táxi nos dá notícias importantes que ajudam o entendimento do desenrolar da história, na voz de Cardinot, radialista que fez sucesso na cidade com seu programa policial sensacionalista.
As cenas que se passam na festa de Nossa Senhora da Conceição têm um toque de realismo, pois são gravadas no mesmo dia em que ocorre a festa. Pessoas comuns (não atores) são mostradas chegando ao morro e enquanto as duas atrizes são retratadas em sua penitência, milhares de outras personagens reais se confundem com elas na multidão.
A imagem da santa é lembrada desde o início, quando é mostrada junto aos vestidos brancos de noiva uma escultura de cobra, assim como na imagem da santa que fica no morro, mostrada no final, no dia da festa. A cobra também aparece no momento entre a entrega dos vestidos e o desaparecimento dos bandidos, junto aos manequins roubados, e representa o pecado. Nota-se, ainda, a pintura da mesma cobra em uma espécie de toalha pendurada na janela de um prédio.
A parte final, intitulada “Táxi Driver”, é uma seqüência com o motorista de táxi rodando pela cidade e conversando com os passageiros sobre o Recife. De forma irreverente, entre ironias e piadas, ele cita mais defeitos do que qualidades do Recife, ressaltando também a dificuldade do povo que vive nesta cidade. O texto é cativante, gerando identificação com o público, posto que poderia ser dito naturalmente por qualquer recifense que, apesar de todas as dificuldades, ama a sua cidade.
Enquanto Roger profere seu texto, no banco traseiro do táxi passam figuras ilustres e conhecidas da cena recifense, como Geninha da Rosa Borges, José Pimentel, Jason Wallace, Canibal, Wlamir Chagas e até mesmo o próprio Heitor Dhalia, entre tantas outras. É uma espécie de homenagem a esses personagens que fazem do Recife um pólo artístico-cultural. Homenagem essa que não poderia deixar de existir, uma vez que “Conceição” é um curta que conta toda a sua narrativa na cidade do Recife e a mostra em tomadas panorâmicas. Nada mais justo que homenagear essa cidade que nos dá essa diversidade de lindos planos e os artistas que a fazem capital multicultural.

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CONCEIÇÃO
Por Gabriela Leal

“Conceição é um filme de prostitutas, bandidos, com uma santa no meio”

Diversão, ação, e até uma pitada de emoção podem ser encontrados nesse envolvente curta de Heitor Dhália.
Conceição envolve o telespectador desde o início, com duas mulheres “de vida fácil”, bastante divertidas, admirando vestidos de noiva, abobalhadas. A narrativa segue de forma bastante ativa: uma fuga, uma perseguição, paixões e um plano, que levará ao roubo dos tais vestidos para a festa no morro da conceição.
Na verdade, não fica totalmente explícito o motivo do nome da narrativa, até o momento em que as duas mulheres estão no ônibus, a caminho do morro Recifense que dá título ao curta.
O curta brinca com nomes de filmes, que foram transmitidos em cinemas locais, para narrar a história, correlacionando a cena ao filme citado. Por exemplo, quando os bandidos vão cumprir o trato que fizeram com as prostitutas, surge uma tela onde se lê “O Pagador de Promessas – Cine Duarte Coelho”.
A direção de arte de Maria Duda é bastante adequada. Há uma representação detalhada da realidade recifense a todo tempo. Alguns detalhes, como o fato de uma das prostitutas estar com o cabelo preso com uma touca, na rua, característica recorrente na mulher da classe média baixa, conquistam a simpatia do interlocutor. Há muita cor, característica também presente na nossa cultura, tudo é muito colorido, as roupas estampadas, etc. Outro detalhe que se relaciona perfeitamente ao recife é o fato de as máscaras que os bandidos utilizam no roubo serem de papangu, personagem do carnaval pernambucano.
A representação precisa da nossa realidade é, sem dúvida, um ponto forte no curta-metragem. O taxista sempre ouvindo programas sensacionalistas, falando de tragédias, representado pelo típico Cardinot; A religiosidade “desleixada”, que só é lembrada na hora de pedir algo, em dia santo.
Pode-se notar, também, a presença de algumas citações tipicamente nordestinas, ou que falam de personagens nossos. Cláudio Assis, por exemplo, cita Matheus e Catirina e se utiliza de gírias só nossas, cômicas, ganhando, mais uma vez, a simpatia do espectador, como, por exemplo, “queimar o arroz”.
O curta transmite emoção, sobretudo aos próprios recifenses, que encontram aí um espelho de suas características mais banais, das quais nem notam a existência até que sejam representadas nesse curta. Heitor tenta mostrar a irreverência do povo recifense ao Brasil, através de uma história simples e gostosa de assistir.

TEXAS HOTEL | Cláudio Assis | 1999


Por Carlos Jorge

O cinema é apenas uma caricatura da realidade, ou seria ele uma suavização do que agride o homem? Caricatura, suavização ou nada disso, o cinema tenta mostrar características da sociedade, e nem sempre a sociedade aceita que suas características sejam mostradas. Cláudio Assis gosta de dar socos no estômago do público, e jogar-lhe na cara, como quem cospe, as verdades mais inconvenientes. Em Texas Hotel, curta de 1999, ele faz uma espécie de apanhado de algumas calúnias sociais menos aceitáveis e as confina num micro mundo, ambientado num hotel caindo aos pedaços. Ainda como quem cospe, joga para o espectador diversos personagens, aparentemente sem ligação nenhuma que possa contribuir para o desfecho da história. Na história não há desfecho. O que existe é a situação comum da morte do dono do hotel e a reação dos animais (pessoas) ao cheiro da carne podre. O que Assis quer fazer não é mostrar um enredo com começo, meio e fim, mas denunciar, e da forma menos poética possível, o comportamento de diferentes estereótipos habitantes do hotel, transformando-o no seu personagem principal (grande mãe consoladora que abraça a todos, mas que não enxerga os problemas de todos, apenas os agrupando). Não há perspectiva de mudança dos personagens, eles são e sempre serão aquilo que é mostrado. E é mostrado de forma instintiva e animalesca, característica do naturalismo exacerbado buscado por Assis nos seus filmes, muito mais reativa que raciocinada. A utilização de cenas como a do animal sendo estripado, ou do plano em que a câmera aponta para baixo nos corredores do hotel, e que permite uma visualização de tudo o que acontece nos quartos, são os maiores trunfos do diretor, que leva isso para seus posteriores trabalhos. Mas entra em discussão: essa realidade mostrada na tela seria excessiva e perderia o tom denunciador para se tornar uma linguagem mais apelativa/ sensacionalista, ou é absolutamente necessária a verdade nua e crua (literalmente nua e crua) para incentivar o olhar da população para os problemas tão próximos, mas tão ofuscados pela moral hipócrita? É aí que encontramos as mais diversas criticas ao trabalho de Cláudio, que se dividem ou por amor, ou por ódio, mas nunca por indiferença, pois é impossível assistir a um filme dele sem se contorcer na cadeira. Texas Hotel, funciona, então, como uma experiência, quase como um piloto, para o primeiro longa-metragem do diretor, Amarelo Manga (2002), que utiliza dos mesmos personagens, do mesmo hotel, e também usa a morte do dono dele como uma das várias histórias contadas no filme, só que dessa vez com os personagens mais bem trabalhadas e com coerência no desfecho da história.

THELASTNOTE.COM | Leo Falcão | 2004



THELASTNOTE.COM
Por Márcio Andrade
O cinema pernambucano encontra em Leo Falcão um exemplar diferenciado de representação da identidade nordestina, traduzido de maneira interessante em thelastnote.com, curta-metragem realizado em 2003 que conta com as atuações de Gustavo Falcão e Lázaro Ramos. Com roteiro do próprio Falcão, foi premiado no Cine PE pela trilha sonora assinada por DJ Dolores.
Centrado na estória de Collodi, o usuário de um site especializado em suicídios, e Lázaro, o criador e funcionário do serviço de suicídio a domicílio, o filme tece uma crítica universal sobre a desumanização da sociedade ante a maquinaria digital, que oferece todos os serviços que um indivíduo pode imaginar, ignorando as conseqüências morais e éticas de suas ações. Trazendo à tona o cinismo dos pós-modernos anos 90, Falcão traz questionamentos feitos por um homem que resida em Pernambuco, na Europa ou no Japão, o que torna sua obra perfeitamente compreensível e passível de identificação em qualquer destes lugares, o que o destaca da maioria dos cineastas pernambucanos. Enquanto a maioria destes opta por localizar e trazer o povo pernambucano em sua essência mais explícita, Falcão a dilui, aderindo a um cinema que se espelha numa estética hollywoodiana. Essa perda da identidade pernambucana devido aos meios globalizantes de comunicação se transpõe para a realidade fílmica por meio de uma “crise na representação” - que está diretamente ligada à destruição dos referenciais que, durante a Modernidade, norteavam a criação e análise de obras de arte.
A globalização e o individualismo inerentes ao mundo pós-moderno são inspiração clara para o conteúdo e a forma do curta. Ambos os personagens representam os dois lados conflituosos tanto da mente humana como da sociedade como um todo: RAZÃO X EMOÇÃO. Lázaro se adequa à sociedade que o construiu: impessoal, pragmática, homem que busca a competência na maneira de cumprir suas obrigações antes da realização pessoal; ao contrário de Collodi, que representa o que ainda resta de humanidade nesta outra face da moeda: inseguro, indeciso, humano. O clímax deste conflito se estende no telhado de Collodi, onde ele ainda pretende fazer parte da vida das pessoas mesmo que precise morrer para isso. Ele tem a pretensão – ao mesmo tempo egoísta e altruísta – de mudar a percepção das pessoas sobre a vida e a morte. O filme encerra, de maneira irônica, a jornada de Collodi e Lázaro, levando a crer que questões existenciais como vida e morte não encontram mais o mesmo espaço que tinham na Modernidade. Um discurso semelhante é proposto pelo curta de animação Na corda bamba, de Marco Buccini, mas que, ao invés da sátira, expõe de maneira poética essa realidade descompromissada com as emoções e uma possível mudança nesse paradigma. Em thelastnote.com, a realidade além das duas protagonistas não ganha grandes mudanças após sua morte, da mesma maneira com o espectador, que apenas acompanha o início de tudo: o anúncio do site proposto por Lázaro.
Mas será que o caráter múltiplo, policultural e hiperinformacional da pós-modernidade influenciaram de maneira positiva o cinema de Falcão ao observarmos que ele eleva o perfil do pernambucano e o torna universal? Ou é possível também verificar nesta maneira de representação um meio de apagar os rastros de identidade do pernambucano nesta representação deslocalizada no tempo, espaço, ação e personagens? Ambas as resoluções têm pontos positivos e negativos, mas para Pernambuco creio ser mais válido um cinema que possa espelhar o povo produz e reproduz essa cultura e não está ligado às formas homogêneas de realizar cinema no exterior, pois, como atestam os pós-modernistas, “todos os discursos são válidos”. Inclusive este.
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THELASTNOTE.COM
Por Catarina Pires

O curta-metragem “TheLastNote.com” (2004), de Leo Falcão, traz como personagens o depressivo Gustavo Colodi (Gustavo Falcão), que encomendou os serviços do misterioso site thelastnote.com, e Lázaro (Lázaro Ramos), representante do referido site. O verdadeiro serviço prestado pelo site só é revelado no final do filme, quando o imaginário do espectador já foi bastante estimulado. Pouco a pouco, durante os catorze minutos de duração do curta, descobre-se que o thelastnote.com auxilia seus membros a fazerem o que eles querem, no referido caso, suicidar-se.
Gustavo fez a sua inscrição no site, deixando de ser visitante para se tornar um usuário. Assim, segundo as regras do site, ele teria de se suicidar, mas ele não está tão seguro desta decisão, o que leva Lázaro a ter de fazer um atendimento personalizado. Chegando ao apartamento de Gustavo, Lázaro encontra vários métodos possíveis para a realização do suicídio, como a corda amarrada ao teto, a banheira, as drogas, as pílulas, a navalha e inclusive o próprio prédio onde ele vive. Lázaro começa a perceber que na realidade Gustavo não quer cometer suicídio, embora este afirme o contrário.
Através de um enredo que prende o espectador à trama, “TheLastNote.com” faz uma crítica à atual sociedade de consumo e os males gerados por ela. Gustavo é, na realidade, um reflexo dessa sociedade, que supre as necessidades materiais do indivíduo, mas não as emocionais. Há neste modelo de agrupamento social uma ausência de preocupação com o íntimo das pessoas, com seus pensamentos, suas angústias e alegrias, embora a publicidade tente a qualquer custo fazer com que elas acreditem no contrário. Afinal, segundo ela, o produto ou o serviço foi criado pensando-se “exclusivamente em você”. Como se pode perceber no final do filme, quando é mostrada a propaganda do site, a linguagem é usada de maneira ardilosa na intenção de se persuadir determinado público, neste caso um público já fragilizado emocionalmente. Essa configuração de sociedade gera uma população problemática, com um frágil equilíbrio emocional, que leva as pessoas ou a um consumismo exacerbado na tentativa de suprir a falta de algo, ou a preferirem a morte a continuar fazendo parte desse mundo, desse sistema.
Se existem pessoas com essa fragilidade, por que não fazer disso um modo de gerar capital? Lázaro representa o típico capitalista moderno, que possui certa ética, ao ponto de saber que matar alguém é crime e não desejar fazê-lo, mas que para ganhar dinheiro, ou seja, em se tratando do seu negócio, ele pode ajudar as pessoas a se matarem. E caso elas não cumpram o estabelecido, ele faz então um atendimento personalizado, não na tentativa de ajudar o usuário, ou de tentar convencê-lo a fazer o contrário, mas apenas para assegurar que o seu negócio continue funcionando. E bem. Para isso, não pode haver desistência, pois tal atitude representaria uma insatisfação com o site por parte do usuário.
O curta mostra ainda como a internet se faz cada vez mais presente na vida das pessoas e como seus serviços a cada dia se tornam mais abrangentes. Hoje se pode comprar qualquer tipo de produto de qualquer lugar do mundo através da internet sem sair de casa. E a variedade de serviços vai do mais simples ao mais exótico. A internet nos auxilia em tudo, até mesmo na decisão de se matar. O filme é apenas uma sátira, mas quem garante que isso já não esteja disponível na rede?
Leo Falcão consegue criticar de maneira sutil a maneira como a atual sociedade se apresenta, mostrando o rumo que a população está tomando. É um filme que não deve ser visto apenas uma vez, pois a cada vez que é visto outros pontos ficam melhor esclarecidos.
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THELASTNOTE.COM
por Zandra Monteiro

O filme mostra, desde sua abertura, sobre que assunto vai tratar: tecnologia. E, quando você começa a pensar que será mais um “Matrix”, ele surpreende a todos com uma comédia que mostra a dependência do homem contemporâneo em relação ao mundo tecnológico.
A história se passa no edifício de Gustavo, homem que contratou um serviço via Internet e espera que este resolva todos os seus problemas que, segundo ele, não são poucos. A chegada de Lázaro no apartamento é envolta por mistério gerado tanto pela escuridão da cena quanto por não sabermos ao certo o motivo daquela visita ou mesmo a origem do serviço. O auge da apreensão do espectador acontece quando Lázaro busca na casa de Gustavo possíveis formas de matar: examina cuidadosamente uma navalha, comprimidos, cocaína, etc. O constante barulho de engrenagens aumenta a tensão: o que estaria aquele homem fazendo ali, enquanto Gustavo prepara o café?
Incrivelmente o sistema do site tem acesso a tudo: quantas vezes foi acessado, por quanto tempo, por quais possíveis motivos... Enfim, controle total sobre os usuários. A superioridade da tecnologia sobre o humano é mostrada quando, apesar do nervosismo de Gustavo, Lázaro toma calmamente o seu café e folheia um relatório, como se o outro lhe fosse indiferente.
O filme conduz de forma espetacular as emoções do espectador e o frustra, sem fazer com que ele perca o interesse, muito ao contrário: atiça a curiosidade sobre a próxima cena. Essa virada é percebida claramente quando somos tirados de um clima de tensão e mistérios, gerados pela confusa relação entre os dois homens, e lançados a uma atmosfera cômica na discussão sobre o suicídio de Gustavo, assunto geralmente discutido de forma tensa e que gera de forma óbvia uma reflexão.
Esse não tem certeza do que quer fazer, pois a morte não é vista por ele como uma forma de escapar dos seus problemas, mas como um meio de ficar conhecido, causar impacto. Como lhe falta coragem para prosseguir, ele pede que Lázaro o mate, e este afirma que isto seria assassinato e que ele somente “ajuda a fazer o que você quer, eu não faço por você”.
Todo esse conflito e mesmo racionalidade fria do sistema, que premedita a morte de uma outra pessoa como um serviço qualquer oferecido pela Internet, é resolvido por um simples “capricho” do acaso. Não adianta todos aqueles cálculos, possibilidades e análises, no fim, uma brisa conclui a questão com a morte de ambos. De forma inusitada, o filme acaba e nos deixa uma agradável sensação de incredibilidade cômica, mas também nos faz pensar sobre as possibilidades do viver.
O discurso final de Lázaro, transmitido pela televisão num comercial do serviço “TheLastNote.com”, defende que “o que realmente importa pode não ser o que você viveu, pode simplesmente ser o que você quis viver” e a possibilidade de recomeço para viver num mundo de sonhos e conquistas é oferecida por este serviço (entenda-se formas tecnológicas).
Através de clichês como as possíveis formas de morte e a famosa carta do suicida, o filme constrói uma nova forma de abordar a dependência do homem das facilidades oferecidas pelas tecnologias e como estas interferem nas decisões tomadas pelo ser humano, ao qual não é permitido que “volte atrás” em suas decisões. O sistema, após ser aceito por seu usuário, passa a controlá-lo e o trata como máquina, exigindo que se torne frio e preciso em suas escolhas. Quando o homem-usuário tenta romper com um acordo feito, é eliminado e arca com as conseqüências de ter acessado o sistema.