14 de janeiro de 2008

RECIFE DE DENTRO PRA FORA | Kátia Mesel | 1997


RECIFE DE DENTRO PRA FORA
Por Paolla Marletti

Com muito esmero, o curta-metragem “Recife de Dentro Para Fora”, de Kátia Mesel, analisa uma realidade um tanto cruel da capital pernambucana, sem renegar a sofisticação estética da imagem e a coerência entre imagem, texto e som.
O audacioso projeto documental da diretora pernambucana encontrou respaldo no poema intitulado “O Cão Sem Plumas” do poeta modernista João Cabral de Melo Neto, musicado por Geraldo Azevedo e interpretado por ele, Zé Ramalho e Elba Ramalho. Tendo sido influenciado por correntes surrealistas, o poeta “pinta” imagens não-reais se pensadas no aspecto físico, mas condizentes com o quadro social no qual se encontra o rio Capibaribe – personagem principal tanto do poema, quanto do curta. Comparações excêntricas e escabrosas se misturam com a falta de estruturação linear da sintaxe. Na tradição ocidental romântica, havia uma troca de emoções entre o eu - lírico poético e o leitor. João Cabral, no entanto, quebra essa tradição (modernista que é), dando um objetivismo maior a sua obra. No curta, entretanto, há um resgate do subjetivismo lírico sem render-se ao tradicionalismo antigo. Desse modo, as imagens retratadas no vídeo e o texto de João Cabral se completam –razão e emoção –resultando num documento de análise do destino escolhido pelo homem para o rio e para o próprio homem, que pelo rio é moldado.
O curta-metragem acompanha a construção do poema que se vale de duas fases. A primeira, uma descrição física do rio, seu percurso, desembocadura e elementos que o completam no âmbito espacial (o mangue, por exemplo). Essa descrição leva a uma segunda etapa do poema: a análise da geografia humana da comunidade ribeirinha, à margem do rio, mas mais ainda, à margem da sociedade. As imagens deixam claro o que João Cabral pretendia: denunciar.
O homem é dissolvido no rio. A análise de um resulta na análise do outro, conseqüentemente. Há uma análise do meio ambiente, sem dissociá-lo das questões humanas. No poema, homem e rio se misturam, não se sabe onde um termina e o outro começa. A negritude do homem é da lama negra promovida pelo rio, a pobreza do homem é causa e conseqüência da pobreza do rio. Pretende-se, então, uma reflexão sobre o que o homem está fazendo do rio, e, sedo indissociáveis, o que está fazendo de si mesmo.
O autor também cria uma oposição entre as coisas como são e como deveriam ser. Ao constatar a ferrugem e insalubridade da água, ele sonha com a água perfeita de um copo de água, da chuva, a água que abre para os peixes. Quanto ao que deveria ser o homem, ele sofre com a realidade dos moradores das margens do rio. As imagens mostram exatamente esse potencial de “dever ser” não explorado do rio, e retrata no que se tornou, assim como mostra o Recife “desenvolvido” erguido ao longe do Capibaribe em contraste com os que por ele são moldados. A realidade desses últimos encontra nas lentes uma fotografia tão cruel quanto bela.
Kátia ainda buscou auxílio em depoimentos da vida do próprio João Cabral de Melo Neto em relação ao rio Capibaribe. Esse elemento legitimou o curta como sendo documental. Além, é claro, das imagens feitas de dentro do rio, das paisagens e pessoas que o margeiam.
A análise social e psicológica, a retratação da realidade e o primor da imagem na obra proporcionaram-lhe a devida visibilidade no meio cinematográfico tendo angariado vários merecidos prêmios, entre eles o de melhor fotografia no XXV Festival de Gramado e o de melhor trilha sonora no XXX Festival de Brasília ’97. Recife ganha “de dentro para fora” uma crítica e análise contundente, sem perder o brilho e beleza naturais da Veneza Brasileira.
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RECIFE DE DENTRO PRA FORA
Por Paulo Camêllo

Baseado no poema “Cão sem Plumas” de João Cabral de Melo Neto, o curta Recife de dentro para fora apresenta poeticamente um retrato do universo ao redor do rio Capibaribe – desde aspectos físicos fluviais, até o modo de vida das comunidades ribeirinhas, pontuando em diversos momentos a indissociabilidade entre homens e rio no contexto do Capibaribe.
Iniciando com depoimento de João Cabral a respeito do poema, logo percebe-se o traço documental do curta ao alternar entre a fala do autor e imagens aéreas do rio. O autor – consagrado poeta pernambucano do século XX influenciado pela estética literária surrealista, na qual a quebra da estruturação lógica do pensamento e de sua tradução lingüística equivalente são características fortes – ressalta a importância dessa obra ao classificar o poema como sofisticado (ao contrário da simplicidade de “Morte e Vida Severina”, segundo o próprio) e pertencente a uma poesia de transição. “Cão sem plumas” porque o Capibaribe representa um rio que ninguém enfeita.
Após a credibilidade conquistada com depoimento do autor do poema no qual o filme se baseia, o personagem principal da película – o rio – começa a ser “narrado” sob a fotografia deslumbrante de Ricardo Della Rosa e ao som do poema musicado por Geraldo Azevedo e interpretado por Elba Ramalho, Zé Ramalho e o próprio Geraldo. O objetivismo almejado por João Cabral na crueldade metafórica com que desmascara o universo do Capibaribe é, de certa maneira, subjetivado pelos planos e ótica da diretora e roteirista Kátia Mesel.
Dessa forma, trechos como “A cidade é passada pelo rio como uma rua é passada por um cachorro”, “Aquele rio era como um cão sem plumas. Nada sabia da chuva azul, da fonte cor-de-rosa, da água do copo de água, da água de cântaro, dos peixes de água, da brisa na água. Sabia dos caranguejos, de lodo e ferrugem”, “Por que sobre ela [água do rio], sempre, como que iam pousar moscas?” são transpostos para o curta a partir de imagens de palafitas, mangues, lixo, erosão induzida (retirada de areia do rio), entre outros.
Contudo, tanto no texto de João Cabral como no documentário de Kátia Mesel, o aspecto humano do rio Capibaribe é tão importante quanto aspectos físicos como água e plantas. A denúncia sobre o descaso do “rio que ninguém enfeita” é, sobretudo, direcionada à condição da comunidade cuja sobrevivência depende do Capibaribe, comunidade essa marginal à sociedade recifense em geral. Assim, imagens de pescadores, de meninos pobres brincando nas águas sujas do rio, de tetéias, mangues e mãos enlameadas pegando caranguejos servem para ilustrar que “Entre a paisagem (fluía) de homens plantados na lama; de casas de lama plantadas em ilhas coaguladas na lama; paisagem de anfíbios de lama e lama [...] onde a fome estende seus batalhões de secretas e íntimas formigas”.
O contraste entre a excelente fotografia do documentário e a situação alarmante que ele denuncia gera uma reflexão a respeito de como a sociedade pernambucana trata suas comunidades, pois “Como o rio aqueles homens são como cães sem plumas (um cão sem plumas é mais que um cão saqueado; é mais que um cão assassinado. Um cão sem plumas [...] É quando a alguma coisa roem tão fundo até o que não tem)”. A mensagem tanto do poema quanto do filme é a de que o rio e o homem são um só e interdependentes para viver uma vida espessa “porque é mais espessa a vida que se luta cada dia, o dia que se adquire cada dia (como uma ave que vai cada segundo conquistando seu vôo)”.

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